25.9.09

Perereca na Cueca


Gostaria de manifestar meu total repúdio e asco eterno aos anfíbios em geral. Não entendo o funcionamento daqueles bichos, nem o porquê deles insistirem em aparecer a menos de cem campos de futebol de mim. Não é por nada não, é por tudo mesmo.


Nem vem que não tem. Sapo é a coisa mais feia que existe. O próprio Quintana falou que era um burguês balofo depois de uma noite de farra. Eu não entendo as pessoas que acham que um sapo feio é um bicho bonzinho. Não é, gente, não é. Quem fala aquele negócio de que sapo come os bichinhos e que mantém a fauna equilibrada devia olhar para o próprio umbigo. Ele pode até ser útil para uma fauna, em determinado lugar. Mas pra mim não é. Minha casa não tem brejos, enxames de vespas, baratas d'água, colméias gigantes e, infelizmente, cobras para comer os sapos. Quando por ventura aparecem alguns insetos indesejáveis damos graças a Deus por existir o Baigon, o Protex, as cobrinhas incendiárias e, mais recentemente, algumas bolachas Chernobyl que minha prima russa trouxe, que promovem a decadência genética e cancerígena de todos os tipos de insetos da sua casa.


Mas existe uma coisa pior do que o sapo, que; em geral, depois de um maço ruim de Derby e uns cinco quilos de sal você elimina. E quem se sentir ferido em sua consciência ambiental aqui é melhor nem ler, e não me digam que eu deveria ter avisado antes. O texto é meu e eu aviso quando eu quiser.


Estou acostumado a lavar minhas cuecas e pendurá-las no banheiro para secar, não importa o motivo, meus hábitos higiênicos não vem ao caso. No outro dia, antes do banho, dou uma conferida, você sabe, para ver se já secou, se está cheirosa ou enrugada, etc. Também gosto de apalpá-las, sentir a textura, essas coisas. Enfim, é uma questão de estilo.


Pois eu estava no meu sagrado ritual, com a cueca bem próxima ao nariz, erótico, beijando-a, quando algo profano se move lá dentro e vai direto pro chão, para todo o meu horror.


Que nojo, que nojo, que nojo.


Era uma perereca. Fiquei embasbacado com o acontecimento, até então inédito em minha vida. Mãe eu beijei uma perereca. Estava dentro da minha cueca, mãe! Que saudade da senhora, eu aqui falando com quatro paredes. Como assim, irônico, não tem graça nenhuma, não seja sarcástica. Pelo amor de Deus, aquilo é frio, beijei gelo, terá vindo da Patagônia? Quem me dera, Patagônia, lá eu nunca vi nenhum sapinho sequer e olha que eles são muito felizes, não tem mosquito algum. Como assim, cueca fica é no varal? A minha fica é no banheiro, segura de tanto mal! Um dia eu pus lá fora e veio um vento, mas um vento que minhas cuecas pararam do lado da carteira de identidade da Gilcilene Caçanova, coitada da Gil, vai ter que tirar a segunda via, não entreguei, sou um monstro, tiranossauro , fiz gude-gude à noite. Foi a primeira mulher a entrar na minha cueca, a senhora não entendeu a metáfora. Eu sei, não valo nada, prometo ser mais gente, melhorar, criar tipo. Mas não é só isso, mãe. Também tinha algumas minhocas aéreas, o chão do meu apartamento, no terceiro andar, estava repleto de minhocas, ninguém acredita, mas estava, não ponho cueca ao ar livre nunca mais na vida. E agora o que eu faço, tem um ser hediondo aqui comigo, acho que vou colocar o local nos classificados; e eu que que nem comecei a pagar a hipoteca.


-Mata.


Não, a senhora está louca? Esses bichinhos tem alma, a vó Semy dizia, sapientíssima, que quem matar uma perereca volta perereca na próxima encarnação. Não mato.

-Pega com um papel higiênico...


Nem com um rolo de oitocentos e vinte e cinco metros. É do exército russo, bem vermelha, aposto que tem um canhão de leite apontado para mim. É só me aproximar e Stalingrado retornará. Mãe?! A perereca acaba de saltar livremente em direção à sala, está aumentando seu império!

-Vai ver é czarista. Daqui a pouco chega à Manchúria e você nem foi dormir ainda.


Tem razão, paciência e você triufará, é só ficar tranquilo, não pode ser tão horrível assim. É nojento, é um asco, é Bette Davis, mas você vai vencer. Pronto, mãe, pus uma toalha, pelo menos vou lutar de maneira decente, não quero entrar nu pra história; ninguém lembrará do Gianechini em um par de anos, nem do Paulo Coelho, desculpa, eu só quis alfinetar, esse monstro. Volte aqui, Dostovieskyna, eu sei que é você. Não, você não pularia naquele brim passadinho. Pronto, eu também não gostava dele, nem no mocassim envernizado, nem daquela cópia da Mujer desnuda do Picasso que comprei por engano no Irã!!! E agora ela marcha frenética pela gaveta, não terei mais roupa, é inconcebível lavá-las, estarão para todo o sempre infectadas, quiboa limpa, mãe? Não, mancha, devia ter imaginado. Álcool limpa, ei, limpa, queima, estraçalha!


-Não vá botar fogo no apartamento, menino!


Boto sim senhora. Só que não tenho álcool aqui, aiaiai, e ela avança, a filha da puta, em direção às minhas últimas gotas de Chanel 5, não! Espera, agora você vai ver, você quer, você vai ter. Sim, eu sou cruel. Encarnei um gato, cheguei com passos silenciosos pra não acionar as armadilhas russas que, seguramente, ela devia ter nas patas. E joguei.


-Que covardia...era só pegar o bichinho e jogar fora.


Que nada. A princípio ela ficou parada, me olhando torto, tomara que cegue. Três borrifadas e ela se sentiria em Paris, ai, gente alguém gosta de mim! Eu achei que ninguém gostava de mim, olha pra você ver, que cheirão! Mercy, mercy! E foi, desesperada porta afora, as costas queimando de prazer, vai se incendiar quando tocar uma bituca de cigarro, três andares abaixo, desejei do fundo da alma.


Olha mãe, eu venci. Nem acredito, se não fosse a senhora, o que eu faria? Não, eu não estou ficando louco, a senhora está aqui, agorinha mesmo, imagine, eu enfrentando um dragão daqueles. Pronto, voltei pro banheiro, abri a porta, morri. Oi, escória de Darwin. Você voltou. Sim, mãe, tem outra. O mundo acabará em pererecas e pronto, não se pode fazer nada. Ai, Millôr, concordo com você, movimento feminista é nos quadrinhos e perereca é no brejo, acrecentemos, por favor. Força pra tanta coisa assim eu não tenho, mãe, cadê você que não lhe ouço mais?


Só que desta vez ela ficou estranhamente quieta, deve ser uma mina, pensei. Já não tenho mais vocabulário, esgotou, lancei um pusilânime e logo cairia no feia, boba, chata. É difícil encontrar palavra pra tudo. Quando eu era pequeno inventava nome para as coisas, lembra? Meu miquinho era tão bonitinho, meio burro, mais se perdoa tudo. Quando ele pulou na panela de gordura quente não foi um acidente, mãe, não foi. Ele estava fugindo de mim, tinha mordido o meu dedo, corri atrás dele pra me vingar, sempre fui malvado, coitado do Lúcio Flávio. Eu gostava mesmo é do Maurício Cavalcante, o cachorro da vizinha. Era tão lindo, pulava até o muro lá de casa, olha pra você ver, um gato, praticamente. Ele me adorava, me lambia todo, sempre gostei de alimentar os bichos, fazer carinho e tudo, acho que no dos outros, assim melhor. O meu era mais feio, era meio vira-lata, ah, Nelson Rodrigues.


Não contei pra senhora, mas rodei uma ninhada de gatos numa bolsa até eles se borrarem todos. Tinha dificuldade de reconhecê-los, eram todos muito parecidos, sou muito preconceituoso, onde já se viu sociedade assim? Saíram na merda, trôpegos, eu sai também, pra buscar barro e jogar encima pra neutralizar o fedor. Sabe aquela lupa do papai? Era meu carrasco em Antchwitz, meu campo de concentração de formigas hebráicas e ou ''revolucionárias'' demais, daquelas que a gente encontra na porta da faculdade, ouvindo rock pesado, sabe? Eu matava todas, arrancava perna por perna e depois deixava a cabeça; mas primeiro tostava o corpinho, nem se esperneavam, ha-ha. Não, mãe, não é contra o rock em si que tenho rixas. Você sabe, é uma referência meio burra, principalmente quando não se entende o que eles nos dizem. Sempre preferi a Marisa Monte, o João Gilberto, o Ney, a Clara Nunes. Hoje em dia a Mercedes Sosa, a Soledad Pastoruti, mas é porque eu já entendo espanhol. O fato de ouvir rock virou sinônimo pra deixar o cabelo crescer e usar aquelas camisas horrorosas do Nirvana, até o joelho. Isso quando não pintam o cabelo de verde-laranja-terror, e parecem aquele monstro do Hopi Hari, precisando de uma hidratação no cabelo. Não, ninguém lembra de Woodstok, a senhora enlouqueceu? Se perguntar isso hoje vão lhe dizer que é uma batata frita, ou então nome de praça abandonada, como a senhora é antiga; só falta me dizer que também acha o rock jururu.


Nada contra os clássicos, mãe. Não, não tem problema que a senhora goste do Machado de Assis, mas quando alguém aqui me fala que o melhor livro que leu é Memórias Póstumas de Brás Cubas, eu tenho vontade de me jogar na Lagoa dos Patos. Que coisa fácil, gostar do Machado, eu amo ele, mas não é qualquer um que tem esse direito não; vai ver nem leu, e se leu não significa que entendeu, como é pop, como é fácil citar algumas coisas. Sim, muitos conhecem o Fernando Sabino, graças a Deus, vou logo marcando encontro com quem me fala dele. Sou muito fácil, a senhora sabe, daqueles que só dizem sim, ai, essa carência.


Que saudade daquele pão de queijo, daquele cheiro no domingo de manhã! Quando eu me levantava e não lhe dava um beijo no rosto, quando o nosso amor se resumia numa troca tácita de gestos, de bandeja quente em cima da mesa, de bom dia com o olhar , uma felicidade sem riso. Vai ver a senhora já teria dado uma vassourada nessa desgraçada aqui, ou pegado com a mão, me desculpa, mas a senhora fazia umas coisas nojentas. Nunca entendi como tinha coragem de pôr a mão na carne vermelha, aquilo estava morto, meu Deus, nem como lavava os banheiros, que horror, as privadas. Como era difícil ser minha mãe, como era gostoso ser tão impossível pra senhora.


Aquela coisa ainda olhava pra mim. Eu de toalha, no banheiro. Eu gosto que pulem no meu peito, mas se você pula eu tenho um enfarto, escrota. Cueca no banheiro nunca mais, pensei, sempre com a razão, minha mãe. Mas já me sentia tão leve que não borrifei perfume, nem corri atrás, nem gritei: ela só deu meia volta e, à contragosto, se foi por uma fresta da janela.

1 comentario:

Cristiano Contreiras dijo...

Nem me fala, tenho um ódio mortal e repugnância incondicional pelo ser 'sapo'. E nada me faz voltar atrás, o nojo é magnânimo! Inevitável. Há um misto de nojo e medo, de medo e de novo. E tenho dito.