24.3.09

Insônia




Uma belezura. Descia gelada, fazendo irradiar seu calor amarelado por dentro. Veria o resultado só mais a noite, dessa vez havia de dar certo. Quanto a Bernadete, nem se importava mais, aquela megera. E nem vem que não tem. Não to pensando em você não, minha filha! Ah, esses bares da vida tem a mania de inventar o mundo, e o papo do Zeca era o próprio Deus.
-Trás mais uma que essa noite promete.
Sem perceber, fora eu mesmo que pedira. Sou o insone que esta história pretende derrubar, mas cá entre nós, talvez só com muitos goles. O Zeca é o amigo de infância, famoso por ter parado com a academia na sua principal modalidade, o levantamento de copos.
-Será que não é só confiar que você é capaz de dormir, Marcão?
Estranho, aquele Zeca. Desconfio que ele deve beber escondido, o pilantra. Pivetinho, escondia tudo quanto era coisa do irmão, e ainda, na minha casa. Um dia, fui até acusado, e de injusto nem dormi direito. Não sei se pode confiar em pessoa assim.
-Só vou depois da saideira.
E fui mesmo. O chapa quis me acompanhar, mas era lento demais, parecia uma lesma, só que sem aquela conchinha característica, e Deus, eu estava com pressa. Andava e não chegava nunca.
O quarto era aquele, a luz era aquela, a cama mesminha. A televisão não mudava, só a posição que colocava minha tartaruguinha, que ficava quietinha em cima daquele quadrado falante. Tinha livros ali também, muitos deles. Não disse antes, e você talvez duvide, mas professor precisa tê-los ao alcance.
Naquela escuridão de hoje, não foi diferente. Deitei zonzo, e fiquei disperso em pensamentos. Quatro horas depois você podia me encontrar lá, contando o milionésimo carneirinho em câmera lenta. Carneiro, o marido da Ovelha, mamífero quadrúpede que atormentava as minhas noites. Um demo, aquele carneiro. Acho que eles deviam ser todos vermelhos. Às vezes mandava um coiote para pegar os danados, mas eram muitos a se contar, e a caçada aos meus próprios carneiros era um fracasso. E virava para lá, meio que para cá, no conforto que até achava, mas que não servia de nada. Mas o Zeca também, com toda aquela bebedeira! Quando os mamíferos terminavam de pular a cerca eu via a Bernadete ali também, imitando aquele monte de bichinhos fofos, só que a cerca era o portão do vizinho. Que fizeras a Dedete! Tinha nome de chacrete, aquela minha querida! Rimava até com chiclete, e eu masquei e masquei doces memórias, até que pensei ter ouvido alguma coisa vindo da minha tartaruguinha, a Bilica. Pura canseira, aquela altura já estava ouvindo coisas, mas aproveitei para ligar a televisão, vai ver não tinha nada como sempre. E, como disse antes, professores insones como eu, precisam ter livros por perto. Pois quando a televisão cansa, a gente sempre pode recorrer a uma boa literatura.
O que me lembro do dia anterior foi que desisti do livro, e voltei pro leito ainda desperto. Na verdade não sei se dormi realmente, mas se tiver sido, foi algo covarde que o mundo dos sonhos fez comigo, totalmente incompleto e cansativo. Durante a quinta e última aula daquela segunda-feira, a qual eu dissecava a quinta lagartixa nojenta e viva, fazendo exatamente as mesmas piadinhas das últimas aulas, jurei que havia parado no tempo, ou então o relógio estava andando para trás. Será que era crime dissecar alunos? Irônico, me ouvi dizer:
-Agora, um de vocês, venha colocar essa lagartixa pra dormir.
Isso, agora me joga na parede, queria dizer. Quem sabe assim descanso, seu peste? A matemática nunca foi meu ponto forte, deve ser por isso que tinha dado cinco aulas e cheguei em casa com cara de cinqüenta. Aqueles répteis! Uma cobra também, aquela diretora. Das mais brabas, tinha até chocalho chi chi chi chi chi! Oh, chatice, uns estrumes, aqueles alunos. Barulheira, nem um cochilinho de tarde. Tomara que esse mundo acabe em pneus, seus poluidores de meia tigela!
Com dor nas costas fui pro Made in Brasil, aquele barzinho onde o Zeca devia estar me esperando, tomando seu antipático suco natural. Made era China, por tradição, e senti aversão só de olhar para o nome daquele bar de fulaninhos.
-Vai me dizer, Marcão, que os goles não funcionaram? Eu te disse! Um copinho com leite é tiro e queda.
Quem era aquele ali, o descendente de algum fofoqueiro de guerras perdidas? Pois falava mais que a Bernadete na cama. A Dedete, que vivia sussurrando canções para me ninar... e que Lúcifer a possua nos Infernos! Mamãe dizendo que mereço coisa melhor, como se fosse a maneira mais fácil de me fazer dormir. Um monte de sorriso falso, daqueles podres me cercando alí.
-Quer saber? Vocês todos são uns urubus!
O pior é que tive que pagar aquela mesa e um uniforme novo, já que a droga de alguma coisa verde, que o babaca do Zeca estava comendo, manchou todinho. Deve ser capim, pro antílope. A cara do amigo não tinha preço, choque e medo, e também não havia dinheiro que comprasse a decisão dele de nunca mais me procurar. Agora, na cozinha que já fora tomada pela escuridão, pego calmamente um copo de leite quente, que levo pro meu quarto. O quarto dos livros, do quadrado falante com a Bilica, o quarto da grande cama vazia. Experimentei umas lágrimas, na visão da cama. Mas elas logo secariam, se iam. Os goles de leite seguiram o comprimido pelo esôfago, então, lentamente adormeci. Enfim, livre daqueles meus demônios.

2 comentarios:

Lolo dijo...

A veces pienso si es bueno o no tener un sueño tan pesado que apenas apoyo la cabeza en la almhoada me duermo, pero me pierdo de todo un mundo de sucesos fantásticos que podría aprovechar...
No. Creo que prefiero dormirme al instante.

dijo...

Sei como é isso. A noite infinita, o mau humor do dia seguinte, a cabeça latejando de dor por volta das 4 da tarde... Doses de antialérgico pra nao fazer parte das estatísticas dos q tomam calmante. rsrsr Livros, tv, buraco no mega jogos... Só nao conto os tais carneirinhos, pq eles dormem muito antes... Mas a noite é sempre melhor q o dia!