
Não havia quadros, pessoas nos papéis. Na madeirinha da penteadeira, simples espelhinho de Cinderela. Colchão-palha, seca e amarela era a sua bonequinha. Olhinhos esbugalhados, os da Maria. Não tinha braços, o rato roera o seu cabelo de uma cor só. Largou-se da Doninha-dos-Retalhos, o sol já era escandaloso pelo vão do teto.
Um, dois, três pulinhos. Aquecida já estava a Maria. Tinha que se preparar para não tombar na escalada no corpo da Doninha, feita com dentes e grandes saltos. Junto com o marido, a Baratinha aplaudia do teto, enquanto a Formiga reclamava do chão, oras essas , o silêncio para seu trabalho. Do coração, tic-tac e zás pra bela face. Lá estava a Maria, pano na pele, beijo na boca.
-Doninha, está aqui sua Mariazinha! Já nasceu o amanhecer, levanta de novo pra gente viver!
E vivia, a Doninha. Fechava os olhos a Mariazinha. Pegava aquele seu trapinho de pano e ia trabalhar, altas horas a limpar. Era um celeirinho, moravam juntas com aqueles cavalinhos, bezerros e cabritinhos. Começava por ali mesmo, todo o feno para dentro, a chuva forte podia estragar. E Dona Veva se iria, iria muito é xingar! Arrumava no espelho, com aqueles cachinhos pôr-do-sol pra lá de destrambelhados. Um espelho, espelho meu, só diria a verdade.
-A Marieta é mais bonita.
Não se importava, a Doninha. Tinha os braços de Maria para lhe consolar. Pobre era, pobre fora, e pobre ainda que foi para casa da Dona Veva limpar. A Dona não ralhou, apenas mandou-lhe subir para limpar mais e, no quarto da Marieta, a sua tão querida filhinha.
Escadas e corrimão, pisos de mármore naquele chão. Gente grande por toda parte, esnoba, espiona, veja, minha Doninha, como é bela aquela arte! Zebras em molduras de vidro, a própria África nas paredes. Será que ali tinha Leões? Os Leões comiam Zebras, então como a listrada estava ali, deve que não havia não. A Vespa , prima da Baratinha, uma vez zombara dela, quando ela pensou que Leões eram como nos contos, falantes, fofos e bonitos. Afinal, eram Reis e Reis deviam ser assim.
-Zum zum zum. Vão é te comer. Eu mesma já vi um, e escapei por pouco daquelas patadas de gatão. Zum zum zum. Tem coisas que cravam na gente e se pega não escapa. Tive que dar um monte de piruetas, aquelas garronas sempre zum zum perto de mim. Mas eis que Zum! Driblei de um jeito que o Rei não me pegava de jeito nenhum. E estou aqui, não estou?
Será que a Doninha sabia disso? Agora a Maria estava preocupada, abriu até seus olhinhos virgens de beleza e tanta riqueza. Na parede havia também uma mulher, como que deitada naquele quadradão. Era bem diferente da Dona Veva, não parecia um porco de granja. Era bela, com traços simples de Eva, mas cadê a maçã? Agora já avistava o quartinho da Marieta, a sua Doninha tirava as aranhas com uma baita de uma vassoura, esconde da Dona Veva, senão ela voa.
Um dia ela moraria num quarto, um quarto com portas. Não porteiras, portas. Aquela ali era grande e enfeitada, rosas para todos os cantos. Parecia um quarto de Rainha.
Rainha, esposa do Rei.
Leão, Rei dos Animais.
Iriam ter suas vidas devoradas! Separar-se-iam para sempre se aquela porta fosse aberta, retalhadas com as garras do gatão! Logo ela, a Maria, tão abençoada nas mãos da Doninha. E agora até a própria Doninha iria ser toda retalhada! O que ela tinha feito pra isso? A Marieta era uma malvada, casando com um Leão assim. Usou toda a sua força de boneca, num surdo grito de desespero, mas parece que sua Dona não queria ouvir...
Abriu a porta, e já estava se despedindo das suas pernas de pano quando não viu nada, senão uma bela garotinha, loirinha e deitadinha naquele tapetão. Janelas frescas, a luz silenciosa passando docemente pela cortina. Na penteadeira um espelhinho de Rainha, batonzinhos por toda a parte.
Era beleza de algodão, a Marieta. Na sua inocência, dormira com o Urso bem no chão. Tinha tudo, até sílaba nova no nome que era da Maria por direito, essa Marieta. Talvez o A tenha sido um amor roubado da mãe, já o Eta não se sabe, eram tão ricas que muitas coisas simplesmente não faziam sentido. Que quarto mais bonito. Tinha até um céu, aquele ali.
-Nosso céu, Maria.
As duas dormiam no estábulo de um celeiro, a outra na cama confortável de uma família. Doninha já limpava a cama da filha da Veva, aquele travesseiro tão fofo e branco. Tão terno que Marieta nem acordou, quando calmamente a Doninha a fez dormir de verdade. Ficara ali, a fitar as estrelas, como eram belos aqueles planetas. Doninha fora até justa, pois o céu era muito perto, para a amiguinha Marieta.
A Maria abençoou o céu para que iria a menininha, enquanto a Doninha pegou um pincel e derramou tinta nas paredes e na garotinha. Pintou rápido na moldura, os caracóis de cachinhos, a pele agora mais branca da Marieta. Restou então uma figura no quadro, como um anjo que admira seu mundo dos sonhos, dormindo profundamente com um Ursinho no colo. Já a garota da sala desapareceu, e foi na arte que ela renasceu.
Quanto a Doninha, caiu num grande choro, ao ver tão belo trabalho na parede. Ficara tão bonitinho o corpinho da Marieta sem vida! Um dia poderia virar até artista, se fosse num dormitório de crianças à noite. Chorava e chorava, até que para se disfarçar de Marieta foi ao espelhinho e passou aquele batom, que ela nunca, nunca usara. Os sapatinhos de cristal, a cama fofa, os novos ursos. A Dona Veva amava tanto a filha que nem notara a diferença, exceto pelos seus novos dons artísticos.
Tinha tudo agora, a Doninha. Para a pequena e descabelada Maria, nem olhava mais. A boneca quisera abraçá-la com os dentes, com o pano sobre seu corpo. Aguardava escura e esquecida na inutilidade de uma caixa velha de Marieta. Esta, dormia tranquilamente na parede acima, uma pena na lamparina do teto filtrava seus sonhos. E a Maria ali, chorando no silêncio, a lembrar dos tempos em que não havia teto, e o sol entrava escandaloso pelo celeiro.

2 comentarios:
... moral da historia... cuidado com a faxineira.... hehehe... principalmente se ela for acostumada a andar com bonequinha de voodoo....rsrsrs
Jú, gostei do conto!! mas tive que lê-lo mais duma vez, estou no processo de compre-ender, nao é fácil pra mim, mas tento...
Minhas monecas têm a capacidade de produzir certezas na minha alma e gratas gargalhadas nesta frágil menina, que nao se acostuma ao mundo.
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