7.10.09

O melhor pastel do mundo

Era sempre a mesma coisa. Cara de espanto, um riso convulsivo e diversas manifestações explícitas de poder. Mil quatrocentas e cinquenta e sete redações em cima da perna, quarenta em cada turma, bom humor as vinte e quatro horas?

-Esse aqui se lascou.

Eu me contorcia toda ao ler as estapafúrdias dissertações. Que saudade dos tempos do Garrastazu, onde cada ausência de vírgula era amparada por uma varada! Sem falar que aprendíamos Francês, cujas palavras tem uns quinze acentos, ai se colocasse só treze. Agora, com este almaço repudioso em mãos, eu teria tempo de voltar à Paris em uma só oração, de vinte e sete linhas e nenhuma pontuação.

-Se você acha que eu quero dar a volta ao mundo num suspiro, está substancialmente enganado, ser néscio. Se lhe ocorre uma vírgula de vez em quando, eu lhe agradeço. Fiquei roxa aqui.

Às vezes tossia e não parava mais, acho que tosso até hoje, se não me engano. Não tenho a vocação olímpica necessária e sinto que superei todos os meus limites quando termino de corregir meus textos. Quando pecam por falta de pontuação, eu sou atacada por minha crise asmática. Prego um asno enorme na folha, adoro adesivos, internado com um balão de oxigênio na capital asiática correspondente, cuja distância eu tive que percorrer até, exausta, parar. Em geral, Kuala Lumpur; mas tenho vários deles que chegaram às Ilhas Fidgi, ao Nepal, ao Butão e há casos de asnos internados até no seriado Lost. Era um pulmão enorme, cinco vezes maior que o quadrúpede, que é pra representar o tamanho da minha paciência de não ter passado tudo para o Júlio Verne, meu cão.

Nenhum pontinho diáfano, nenhuma virgulazinha cândida. Se pelo menos viesse mais rápido minha aposentadoria, por favor, essa nova lei. Pronome relativo é uma ilusão, mais fácil a Rússia sair da Chechênia; o Louvre devolver relíquias à Grécia; o Sarney sair do Senado; ou, pior ainda, meus alunos entenderem todas essas referências com as quais eu construo toda a minha tese, que refuta todo e qualquer direito de resposta a quem escreva você com ésse.

Cujo virou lenda. Dizem que os egípcios, cuja referência é a mais antiga que encontrei, regavam os campos cujas plantações contornavam o Nilo, cujo curso é dos maiores do mundo, cujo fim deve estar próximo. Isso quando não usam demais o que não sabem. Porque se você não sabe usar, tudo bem, é um ignorante, vou odiar você, mas se usa demais é um mal educado. Para esses eu reservo um adesivo de uniforme laranja, que é para combinar com aqueles prisioneiros árabes no Guantánamo, mas dar um ar gari ao réu. Marinéia, uma aluna estranhíssima que se acha a Mônica Waldfogel, possui uma sacola de vírgulas Prada, comprada na Cidade do Leste, com a qual atira esses sinais à torto e a direito.

-Um mais um, dois. No entanto, você foi bem mais longe. Se juntássemos essas vírgulas conheceríamos vários planetas. Muito prazer, Sonda Marte.

Tenho, inclusive, repensado na existência de muitas coisas na vida, com mais calma. Quando leio uma redação desse personagem, esse da sacola Prada paraguaia, reflito sobre o que uma pessoa elege para sua vida. Como eu fico triste quando constato que a Marinéia gosta de escrever, Sérgio Buarque! Fico vermelhíssima, sinto muita vergonha alheia, quase mudo de profissão e vou vender água de coco, que eu adoro. Também adoro pastéis grandes, desses da feira, aquela massa é muito gostosa, adoro a Dona Teresa, um abraço pra você. Mas a Marinéia não, quer ser jornalista, quer não, queria, coitada. Sofreu um acidente de carro recentemente, me sinto culpada, como ela não jogou umas quinze vírgulas na curva ninguém explica. Mas fico tranquila: pessoas assim não chegam nem ao inferno, quantas escalas teriam que fazer, imagine. O Diabo super ansioso e a pessoa descendo, aqueles, degraus, como, faço, pra, chegar, a,í, por, fa,vor!

Sempre apoiei a construção da Carreterra Austral, mas não sou adepta do modernismo Pinochet. Sou uma pessoa muito ruim, mas espero não ter que matar à muitas outras para fazê-las escrever um texto decente, ou um país decente, se é que ensinar a escrever é possível, ou o segundo argumento também. Eu me sento nesta cadeira empoeirada, os livros esparramados pelas estantes, acreditem, sou desorganizada com eles. Vejo as histórias caírem aos montes, os personagens desenhando-se em todos os cantos da casa, minha cabeça velha sem aquele turbilhão de antes, a dignidade final dessa minha solidão. Só sei escrever assim, com minhas idéias soltas, fisgadas de um tal poço recôndito de onde saem muitas coisas, menos a minha vontade de permanecer nele.

Não sei por quanto tempo suportarei ver tantos livros perdidos, sonhos esquecidos, sondas marcianas e pessoas que levantam a voz para ocultar a falta de estudo. Não aguento meus alunos achando, tirando argumentos tão fedorentos que só podem ter saído das axilas. Não aceitaria um assassínio gramatical, sou tradicional e má, reitero, mas se a falta de concordância, de sintaxe e toda a gama léxica pudesse ser justificada por um argumento plausível, eu não gastaria tantos adesivos. Não que eu fosse sair daqui, mas talvez saísse menos do sério. Não frequento casas noturnas, pareço uma samambaia nesses lugares, fico aqui, com meus livros sussurando e minhas redações que andam pela hora da morte.

Outra coisa que não sou é professora de Geografia. Mas ontem, quando me perguntaram se os Estados Unidos ficam na mesma Terra que o Brasil, respondi que não, que não ficam, estão no mesmo planeta que você, alien, saiu. Não sabem onde é o triângulo mineiro, olhem só, o nariz do mapa, que vergonha; que São Paulo é nome de estado e cidade, e muitos, do fundo da alma, querem cursar engenharia espacial para construir uma nova ponte aérea, deve ser linda!

Meus cabelos já estão brancos, minha pressão está na troposfera e me senti muito desamparada quando a Mercedes Sosa morreu. Às vezes acho que também estou morrendo, que dói tanto não poder falar de La Negra à qualquer pessoa, que é um atentado à história não conhecer suas canções, dói saber que vi um ótimo filme, que li um ótimo livro e a única coisa que me resta é registrá-los aqui, senão aquele momento se vai e não posso compartilhar essa minha alegria com ninguém. Prefiro escrever, e, ainda que uma legião de ignorantes se materialize em minhas pernas por essas folhas, que eu gaste todos os divertidíssimos adesivos para nada, só por maldade e de tripudiadora que eu sou, eu consigo sorrir. Tenho minhas próprias solidões e angústias, cujo refúgio são minhas palavras, meu humor de gente ruim, grosseira, insuportável. Eu me abraço aos livros desorganizados, me derramo sob minhas canções que ninguém conhece ou ninguém gosta e, principal e diariamente, mantenho minha prosa feliz com a Dona Teresa e seus pastéis, tomando água de coco.








2 comentarios:

Júnior Coelho dijo...

Quem não comentar vai ter a vida amaldiçoada para sempre. E saiba que esta é uma praga poderosíssima, dura uns 150 anos, e só eu e a Joana Dark conhecemos o contra feitiço.

Fillipe Gontijo dijo...

Maluquinho, como sempre. "Qual o sabor do recheo do pastel?!", foi o que me perguntei no instante em que terminei de ler. Depois, me perguntei sobre a mesóclise, senti falta dela e, por último, lembrei-me da vírgula-respiratória, uma ótima regra-desculpa para usurpar o lugar de um ponto final ou de um humilde espaço! Gramática?! Amém!